terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O RIO NAS LETRAS DE UM FOTÓGRAFO



O emissário de Ipanema: joga esgoto em Natura no mar próxima às Ilhas Cagarras (foto: Carlos Secchin)
Mar urbano. Uma visão submarina do Rio
Carlos Secchin*   

Quando, há cerca de 15 anos, iniciamos as tomadas das imagens submarinas para o projeto de um documentário dirigido pelo fotógrafo, biólogo e mergulhador Ricardo Gomes – focando todo o tipo de mergulho realizado nas águas rasas e profundas que envolvem o Rio –, não imaginávamos que a Cidade mudaria tanto. 

Houve alterações radicais nos perfis de ocupação das encostas, na salubridade da água do seu entorno (rios, lagoas e praias) e quanto às espécies marinhas de valor comercial, tão ameaçadas que caíram a níveis preocupantes de sobrevivência. 

Talvez o morador não tenha percebido porque o consumo de pescado da cidade é bastante baixo, se comparado ao de outras cidades litorâneas de maior ou até menor população. Mesmo com a proliferação de restaurantes japoneses, o Rio continua, em toda a sua longa extensão litorânea, com poucos restaurantes especializados em pescados locais.

Se ousássemos fazer, hoje, o que iniciamos naquela data, provavelmente não teríamos material suficiente para editar um minuto de documentário.

Outro fator determinante que parece fugir aos olhos do carioca é a impressionante queda de qualidade da transparência das águas que banham praias e que circundam as ilhas defronte à cidade. Outrora permanentemente azuis, num passado recente, porém, acabaram por se tornar opacas, de aspecto estranho, muitas vezes de consistência repugnante e cheiro nauseabundo. Bastam dois dias de chuva e de vento sudoeste, o que é comum nesta época do ano, para que detritos e lixo de toda ordem encalhem sobre a areia da beira da praia.






Toda e qualquer produção de imagens que nos desperte interesse no mar exige águas claras. Esse fator é fundamental para a realização das tomadas de cenas, que partem da premissa de oferecer ao público espectador imagens de alta definição obtidas pela qualidade na profundidade focal e através de mais brilho oriundo da luz solar penetrante. Sem essa transparência, todo esforço de se levar uma equipe experiente e tarimbada para o fundo do mar redundará em tempo e dinheiro perdidos.

Baseados na observação diária da transformação para pior de nossas águas costeiras e oceânicas, e ainda, recentemente, com a imprudente transformação do arquipélago das Cagarras em Parque Marinho – onde justo há o lançamento da boca do maior emissário de esgoto do país –, nós, que trabalhamos no mar, nos perguntamos com ceticismo se ainda haverá tempo para terminarmos uma obra há 35 anos inconclusa. Surgindo, na época em que foi edificada, como solução para resgatar a pureza marinha de nossas praias, com o passar dos anos, infelizmente, demonstrou ser de absoluta ineficiência.

Justamente numa época em que todas as luzes convergem a atenção mundial para os grandes eventos esportivos – muitos deles náuticos – que serão aqui realizados nos próximos anos, a boca da enorme manilha do Emissário Submarino de Ipanema (1metro e sessenta centímetros de diâmetro) continua apontando a descarga enorme de esgoto in natura para o mar raso e próximo ao Arquipélago Parque. No vai-e-vem da maré, dependendo da direção do vento, esses dejetos retornam às areias das mais famosas praias do Brasil, contaminando-as com agentes patogênicos, além dos crustáceos, peixes e organismos filtradores que fazem parte da mesa do carioca.

O que não se vê, a intuição e o nariz sentem; e quem já foi vítima da intoxicação resultante sabe muito bem a que estou me referindo.

Desde o começo das filmagens, nos meados dos anos 90 – suspensas no início da década seguinte –, percebemos nitidamente que as imagens daquela época seriam, hoje, verdadeiros documentos históricos da rica e abundante vida das ilhas e das praias da zona sul do Rio de Janeiro.

Cabe-nos, como leais filhos dessa mui heróica cidade, levar ao conhecimento de todos a importância de um fato que atinge diretamente a saúde pública e o turismo. Se ainda houver um jeito de se tratar a matéria fecal absurda que retorna sobre nós, frequentadores das praias e amantes dos esportes náuticos, que urgentemente façamos alguma coisa.

Lançá-la o mais longe possível do litoral talvez seja, no momento, a única solução viável. Temos que alertar à cidade do risco que está correndo, principalmente com a perda do tesouro ambiental pouco conhecido e divulgado – o arquipélago das Cagarras.

Ainda há tempo? Se as autoridades sanitárias se convencerem de que basta concluirmos, JÁ, o alongamento da tubulação que está especificado na planta original da obra, sim; ou, que todos tenham o direito de saber e o risco de aceitar – cariocas e turistas – a alternativa de banhar-se no contínuo retorno dos dejetos sobre as praias da Cidade Maravilhosa.

Esse documentário, quando concluído, tem a intenção de mobilizar e de sensibilizar uma fração da sociedade esclarecida que detém o conhecimento e a responsabilidade de salvar um dos patrimônios naturais (turístico e ambiental) mais valiosos do Brasil.

Apoio é necessário. Decisões são vitais.

Ajude-nos a lavar a alma marinha que mantém o espírito jovem e saudável do carioca. Antes que ele assuma, definitivamente, a reputação de bandalheiro-sujo-irresponsável-boçal- indisciplinado-cafajeste-malandro-violino, e seja também infectado por toda sorte de doenças de pele e de mazelas intestinais.

Da mesma forma que é inconcebível viver próximo a uma usina nuclear vazando radioatividade, o mesmo deveria se aplicado no obrigatório alerta contra banhar-se num mar carregado de possibilidades de contrair sérias doenças.

O fim do ano e a sua passagem, para muita gente, é o momento de se purificar na água salgada do mar através de um banho de descarrego das agruras e marcas deixadas pelo ano que se vai. Diante desse mar, num lindo espetáculo, soltamos fogos de artifício, despejamos oferendas e flores, fazemos orações e saudamos, com esperança, um novo ano cheio de lixo deixado na praia. O que na verdade estamos, com este gesto de fé, é atraindo consequências terríveis à nossa saúde. E aí, santos e orixás vão ter muito trabalho pra nos ajudar. Pode até faltar leito de hospital se o cólera finalmente resolver aqui no Rio se instalar.
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*Carlos Secchin é fotógrafo submarino e antigo colaborador de ((o))eco