quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

FOME E AQUECIMENTO DO PLANETA

Por Sérgio Barbosa de Almeida*

No momento em que se discute em Copenhague como reorganizar as atividades humanas, que aceleram as mudanças climáticas em escala planetária e colocam em risco a vida de boa parte dos habitantes da Terra, não há como manter em segundo plano a questão da fome, que voltou a se alastrar no mundo a partir de 2005.

A solução desse obsceno problema está intimamente ligada às mudanças climáticas. A reunião de cúpula convocada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, em meados de novembro, em Roma, mereceu pouca atenção dos países ricos, cujos chefes de Estado se abstiveram de participar, à exceção do da Itália, país anfitrião do encontro.

Mas qual é o tamanho do problema? Em 2009, a FAO estima em mais de um bilhão o número de pessoas subalimentadas, ou seja, um em cada seis habitantes do planeta. A Ásia contribui com 640 milhões de “famintos”, a África e Oriente Médio com 310 milhões, a América Latina com 53 milhões e, pasmem, os países ricos com 15 milhões. Atualmente, a cada seis segundos uma criança morre de fome no mundo e as perspectivas de curto prazo são assustadoras.

Segundo Olivier de Schutter, Relator da FAO para o direito à alimentação, “todas as condições para uma nova crise alimentar (sic) nos próximos dois anos estão reunidas; não se trata de saber se ela ocorrerá, mas sim quando” (Fonte: Le Monde, 16/11/2009). Apesar da afirmação do Relator, a fraqueza política da FAO pode ser constatada ao se verificar que as projeções de redução da fome, pactuadas entre os países membros, são sucessivamente revistas para pior: em 1991, foi estabelecida a meta de se reduzir à metade, até 2015, o número de 840 milhões de subnutridos.

Em 2005, a meta para 2015 foi elevada de 420 para 750 milhões, mas não ocorreu uma redução dos subnutridos e sim seu crescimento para um bilhão de pessoas (Ver figura abaixo, publicada no jornal conservador Le Figaro, de 16/11/2009). Além disso, o encontro de Roma encerrou-se sem que os países ricos assumissem compromissos com as demandas de Jacques Diouf, Secretário-Geral da FAO há 15 anos, seja em termos dos aportes financeiros solicitados seja em relação à proposta de “Fome zero”, primeiro dos Objetivos do Milênio, estabelecidos em 2000.

Ironicamente, convivemos também com meio a um bilhão de pessoas afetadas por problemas de saúde decorrentes do excesso ou da inadequação alimentar, muitas delas pobres, com acesso apenas a alimentos que “matam” a fome, mas que não nutrem suficientemente e provocam problemas de obesidade e outras doenças.

Gráfico 1 - Fome e aquecimento global



Durante o encontro da FAO, a Via Campesina e outras organizações sociais realizaram um evento paralelo, no qual intensificaram a defesa do conceito de “Soberania alimentar”, em contraposição ao de “Segurança alimentar”, divergência que transcende a questão semântica. Na prática, a “segurança alimentar” como entendida pelos governos representados na FAO baseia-se na disponibilização de novos recursos financeiros para a intensificação da chamada “Revolução Verde”, cujos fundamentos são o desenvolvimento intensivo de monoculturas em grandes áreas de terra – compreendendo a irrigação e o uso de adubos químicos –, o uso de sementes selecionadas, que rapidamente confundiu-se com o de sementes geneticamente modificadas, combinado com o de agrotóxicos, produzidos e controlados por um número reduzido de empresas.

Por seu turno, a proposta de “soberania alimentar” reafirmada por organizações que congregam pequenos agricultores, trabalhadores rurais sem terra, povos das florestas e pescadores artesanais, dentre outros grupos, baseia-se no “direito humano fundamental de todos os povos, nações e Estados definirem seus próprios sistemas e políticas de produção alimentar”, de forma a assegurar o acesso a todos a uma alimentação adequada e saudável, que respeite a diversidade cultural dos povos, aí incluídos os saberes e hábitos tradicionais, alimentares e lingüísticos. As organizações presentes ao encontro paralelo redigiram o documento “Políticas e ações para erradicar a fome e a subnutrição”, disponível no site www.eradicatehunger.org em espanhol, francês e inglês, que apresenta de forma meticulosa e abrangente as engrenagens do sistema dominante de oferta de alimentos, bem como as alternativas para superação do problema da fome no planeta. No documento são abordadas: a) as deficiências e limitações do processo dominante de suprimento alimentar da população mundial; b) a visão conceitual de soberania alimentar; c) as formas de acesso a uma agricultura em bases sustentáveis; d) a relação entre meio ambiente, mudanças climáticas e agro combustíveis; e) a relação entre mercados, políticas de preços e subsídios agrícolas; f) o papel dos Estados e instituições internacionais.

O outono da Revolução Verde

Até o início do século XXI, a Revolução Verde foi enaltecida como responsável pela transformação da Índia de país fortemente dependente da importação de alimentos para a de nação recordista mundial na produção e exportação de arroz, trigo e outros alimentos, ainda que com milhões de indianos subnutridos. O tempo mostrou que as técnicas empregadas funcionam como verdadeiro dopping das terras aráveis indianas, que pouco a pouco perdem sua fertilidade.

Se, no primeiro momento, os agrotóxicos funcionam como defensivos contra algumas pragas agrícolas, ao longo do tempo proporcionam o fortalecimento destas, o surgimento de novas pragas, a destruição de microorganismos, parte da flora e da fauna responsáveis pela fertilização natural do solo, além de afetarem os insetos polinizadores que contribuem para a produtividade das lavouras. Assim, torna-se necessário o uso crescente de adubos químicos para compensar a queda de produtividade, com conseqüente elevação dos custos de produção. Por seu turno, a irrigação intensiva teve o duplo efeito colateral de abaixar significativamente o nível do lençol d’água subterrâneo e de salinizar as terras. Simultaneamente, a utilização de “sementes selecionadas”, controladas por poucas empresas, vem produzindo uma redução na diversidade de culturas e da própria biodiversidade ambiental.

Em conseqüência, inúmeros agricultores indianos encontram-se incapazes de honrar os compromissos com os bancos que financiaram a “modernização” da atividade agrícola que desenvolviam. Alguns vendem suas terras, cuja propriedade vem se concentrando de forma acentuada, e outros optam pelo suicídio, cujo número cresce entre pequenos agricultores, em tendência oposta à dos índices nacionais.

O sistema de suprimento de alimentos dominante no mundo tem se mostrado também um poderoso combustível para o aquecimento global. Estima-se que um terço dos gases de efeito estufa se origine da agricultura e da pecuária, basicamente em decorrência do uso intensivo de adubos químicos derivados de petróleo, à expansão da indústria de carne e à destruição da cobertura vegetal para produção de mercadorias agrícolas, transportadas a distâncias crescentes: é fácil comprar arroz indiano em um supermercado brasileiro, assim como limão mexicano em uma cidade do interior da França.

Beneficiários do sistema internacional de alimentação

É o caso de perguntar: a quem interessa um sistema produtivo que deixa um bilhão de pessoas em penúria alimentar e que contribui para o aquecimento global? Bem, as nove grandes empresas transnacionais do setor de alimentos multiplicaram seus lucros no período em que se agravou a crise alimentar. Entre 2006 a 2008, a Monsanto, a Cargill, a Syngenta e a Bayer triplicaram seus ganhos. A Potash Corporation, maior empresa de fertilizantes do mundo, faturou US$ 5 bilhões em 2008, contra “apenas” US$ 1 bilhão em 2006! (Fonte: Via Campesina: “Agricultura sustentável em pequena escala está resfriando a Terra”, tradução direta de “Small scale sustainable farmers are cooling down the Earth”)

Gráfico 2 - Fome e aquecimento global



Há outros apostadores no jogo da fome. No encontro paralelo de Roma, as organizações de trabalhadores centraram esforços em denunciar a política que vem sendo adotada por diversos países do mundo, cuja produção agrícola é insuficiente para alimentar os respectivos povos, e que estão alugando ou adquirindo terras agrícolas em países pobres da Ásia, África e América do Sul. Os principais “compradores” são Arábia Saudita, Coréia do Sul, Índia, Japão e China. Os principais países cujas terras estão sendo utilizadas para produção e exportação de alimentos são Sudão, Indonésia, Uganda, Filipinas e Argentina, nações onde expressivos contingentes populacionais têm dificuldades alimentares. Por conta do retorno dessa forma colonial de produção agrícola (ou de globalização do latifúndio), empresas e bancos dos países ricos – tais como Goldman Sachs nos EUA, Louis Dreyfuss na Holanda e Deutschbank na Alemanha – produzem relatórios sobre oportunidades e riscos de investimentos e facilitam a compra de terras agricultáveis. Em outras palavras, quanto maior a necessidade de alimentos, mais rentáveis serão os investimentos na aquisição de terras. É razoável esperar a reação dos povos dos países cujos territórios estão sendo cedidos, inclusive em cortes internacionais. Não por acaso, a Arábia Saudita, um dos países líderes no uso de terras estrangeiras para produção de alimentos, “generosamente” bancou o custo total de US$ 2,5 milhões para realização da Conferência da FAO em 2009.

Comércio internacional de terras agrícolas
Brasil desperdiça alimentos




No Brasil, em que pese a aplicação do Programa Fome Zero e outras iniciativas da sociedade, ainda são contabilizados 14 milhões de subalimentados. Um dos caminhos a ser percorrido para superação do problema é a redução do elevado índice de desperdício de alimentos no País.

De acordo com estudos da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, publicados na revista Desafios, set/out 2009, do total de desperdício no país, 10% ocorrem durante a colheita; 50% no manuseio e transporte dos alimentos; 30% nas centrais de abastecimento; e os últimos 10% ficam diluídos entre supermercados e consumidores.
Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE estima que 67% das cargas brasileiras sejam deslocadas pelo modal rodoviário, o menos vantajoso para longas distâncias. O deslocamento do centro de gravidade das áreas de produção de grãos das regiões Sul e Sudeste para a Centro-Oeste, conjugado com as péssimas condições das rodovias brasileiras, faz com que o custo de transporte de uma saca de soja de Mato Grosso até o porto exportador se aproxime de 50% do valor do grão. Pesquisa da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab para as safras entre 1996 e 2002 estima a perdas de grãos em cerca de 10% da produção, o que correspondia a 9,8 milhões de toneladas. O desperdício é agravado por deficiência de estruturas de armazenamento e refrigeração de produtos perecíveis, em um país de clima tropical.

Assim, apesar da redução do desperdício ser uma solução de curto prazo para ampliação da oferta de alimentos no Brasil, o governo dispõe de apenas R$ 500 mil em 2010 para realização de estudos que apontem de forma pormenorizada razões e alternativas para combatê-lo.

*Sérgio Barbosa de Almeida é engenheiro. Foi presidente do Sindicato dos Engenheiros do estado do Rio de Janeiro.